Ao contrário da “narrativa tributária” amplamente divulgada pelo governo federal, logo após a sessão de julgamento no Superior Tribunal de Justiça, em 26/04/2023, em que afirmava a liberação, pela Corte Superior, da cobrança do IRPJ e da CSLL sobre benefícios fiscais relacionados ao ICMS, a análise detalhada da íntegra do acórdão e dos votos dos Ministros do STJ, publicados em 12/06/2023, mostra um panorama diverso, com a possibilidade de exclusão do ICMS na apuração do lucro real, desde que cumpridos os requisitos legais, conforme será detalhado nas linhas a seguir.
Há décadas se discute a tributação federal – ou não – dos incentivos fiscais relativos ao ICMS, concedidos pelos Estados e Distrito Federal. Isto porque, qualquer tipo de benefício fiscal, como isenção, redução de base de cálculo ou crédito presumido, reduz o ICMS a ser recolhido e, consequentemente, a despesa com esse imposto, resultando em aumento do lucro apurado.
A Receita Federal quer tributar o aumento do lucro oriundo da redução da despesa com o ICMS, mas a legislação determina que, atendidas a determinadas condições, os valores dos benefícios podem ser excluídos do cálculo do imposto de renda (IRPJ) e da contribuição social (CSLL), que incidem sobre o lucro apurado.
Essa discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça – STJ que decidiu, em 2018, que o benefício fiscal do ICMS na modalidade “crédito presumido” não poderia ser tributado pela União, através do IRPJ e da CSLL, entre outras razões, por “ofensa ao pacto federativo”, pois a União retiraria “por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou”.
Atento a essa questão controversa, o Senado Federal incluiu no Projeto de Lei Complementar nº 130/2014, que tratou da guerra fiscal entre as unidades da federação, a previsão para que todos os benefícios fiscais relacionados ao ICMS fossem considerados “subvenção para investimento”, já que esse tipo de subvenção já possuía autorização legal para ser excluída da tributação do imposto de renda, conforme disposto no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014.
Após longa tramitação desse projeto, foi publicada, em 2017, a Lei Complementar nº 160 afirmando que os incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS são considerados subvenção para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos no citado artigo 30 da Lei nº 12.973/2014.
Ou seja, de um lado o STJ decidiu que o benefício fiscal do ICMS denominado “crédito presumido” não poderia ser tributado pela União, através do imposto de renda; por outro lado, a Lei Complementar nº 160/2017 alterou a Lei nº 12.973/2014, para considerar todos os benefícios fiscais do ICMS como subvenção para investimentos, desde que tais valores, livres de tributação, sejam utilizados em prol da empresa, não podendo ser distribuídos aos sócios, o que tecnicamente se cumpre registrando tais valores em “reserva de lucros” na contabilidade.
Portanto, até aquele momento a questão parecia pacificada...
Isto porque as discussões no âmbito do Poder Judiciário, bem como no tribunal administrativo da Receita Federal, o CARF, tinham viés amplamente favorável aos contribuintes. A própria Receita Federal reconheceu esse entendimento, com orientação vinculante à fiscalização, por meio de soluções de consultas.
Repentina e sorrateiramente, porém, a Receita Federal mudou seu entendimento no final do mês de dezembro de 2020, aproveitando a distração das festas natalinas, para adicionar, de forma infralegal, outra condição para que os benefícios do ICMS pudessem ser excluídos do lucro real: “a necessidade de que tenham sido concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.”.
O “bode na sala” estava colocado. Ou seja, a empresa beneficiada por incentivos do ICMS teria de comprovar, além dos requisitos legais, que a concessão da benesse governamental teria ocorrido com a condição vaga de “estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos”.
As discussões em âmbito judicial seguiram seu curso, razão pela qual o STJ, com vistas a tentar colocar um “ponto final” a essa celeuma, afetou, em 2023, dois recursos especiais com o chamado rito dos “recursos repetitivos”, que visa uniformizar a jurisprudência, cuja decisão e orientações devem ser seguidas pelas instâncias do Poder Judiciário, bem como, pela própria Receita Federal, Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF.
A questão submetida a julgamento pode ser assim resumida: o argumento utilizado na decisão do próprio STJ, em 2018, que permitiu a não tributação do benefício fiscal do ICMS denominado “crédito presumido”, se aplicaria aos demais benefícios fiscais, como “isenção, redução de base de cálculo, entre outros”?
O julgamento ocorreu em 26/04/2023, apenas com a publicação das teses fixadas, sem maiores detalhes acerca das discussões e da fundamentação dos votos dos Ministros da Corte Superior.
Aproveitando-se da densidade do tema e do vácuo de informações acerca do julgamento que se sucedera, o governo federal deu início a sua “narrativa tributária” oficial como instrumento de incremento na arrecadação federal.
“Vitória no STJ é passo importante para equilibrar contas públicas, avalia Haddad”[1]
Em entrevista à rádio CBN, ministro comemorou liberação da cobrança de tributos sobre benefícios fiscais relacionados ao ICMS; medida abre caminho para aumento da arrecadação e ajuste das contas em 2024
A matéria publicada no site oficial do governo federal rapidamente foi replicada pela grande mídia.
“Haddad obtém vitória no STF que pode render R$ 90 bi a arcabouço fiscal -
André Mendonça, do STF, revogou a suspensão a um julgamento no STJ após receber a visita do ministro”[2]
“Haddad comemora ‘vitória’ no STJ em caso de benefícios fiscais do ICMS”[3]
“Apesar de suspensa por Mendonça, decisão do STJ é vitória para Haddad - STJ decidiu que a União está autorizada a cobrar IRPJ e CSLL sobre benefícios fiscais concedidos por meio de ICMS”[4]
Ato contínuo ao “bombardeio” de notícias sobre a “vitória de Haddad”, alardeada através dos diversos veículos de imprensa, a Receita Federal emitiu comunicado a 5 mil contribuintes, a título de “orientação”, oferecendo “oportunidade para regularizar IRPJ e CSLL antes do início dos procedimentos de fiscalização, sem acréscimo de multa moratória (20%) ou de ofício (75% ou mais), até o dia 31/07/2023”[5].
Os contribuintes ficaram em polvorosa. Não sem razão. O tema é deveras complexo e envolve valores relevantes.
Apenas quase dois meses após, em 12/06/2023, foi publicada a íntegra do acórdão e dos votos relativos ao julgamento, cujos contornos indicam que não houve a “vitória” entoada pelo governo e que, certamente, haverá frustração na estimativa de incremento de R$ 90 bilhões na arrecadação federal.
Foram firmadas três teses que pretendem resolver a questão submetida a julgamento, de forma objetiva, motivo pelo qual se deve, para a total compreensão da ratio decidendi, analisar detalhadamente os votos dos eminentes Ministros.
Nesse sentido, o voto do Ministro Relator traz algumas luzes importantes para o correto entendimento do conteúdo das teses e de seu alcance:
(i) A tese nº 1 responde à questão submetida a julgamento, afirmando que não se pode excluir os “demais benefícios fiscais” relacionados ao ICMS (redução de base de cálculo, isenção, etc.) da apuração do IRPJ e da CSLL, com aplicação do mesmo entendimento da Corte para os “créditos presumidos” do imposto estadual (violação ao pacto federativo). No entanto, os “demais benefícios fiscais” podem ser excluídos “quando atendidos os requisitos previstos no art.10 da Lei Complementar 160/2017 e art.30 da Lei 12.973/2014”;
(ii) A tese nº 2 fulmina a condição vaga e subjetiva imposta pela Receita Federal em 2020 para a fruição da não tributação dos benefícios do ICMS, determinando que: “não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.”.
(iii) A tese nº 3 reafirma o quanto dito na tese anterior, mas prevê a possibilidade da Receita Federal, em procedimento fiscalizatório, verificar a utilização dos valores oriundos de benefícios fiscais do ICMS para “finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico”. Mas qual seria essa “finalidade estranha” a ser verificada em procedimento fiscalizatório? No caso concreto em julgamento, o E. Relator explica: “verificar se houve ou não a comprovação do registro em reserva de lucros e limitações correspondentes, consoante o disposto expressamente em lei”. Em outras palavras, os recursos beneficiados pela desoneração de tributos devem ser utilizados nas atividades da empresa, conforme descrito em seu objeto social, garantindo, assim, a viabilidade do empreendimento econômico.
Nossa área de Direito Tributário permanece à disposição para esclarecimentos sobre este e outros temas de interesse de seus clientes e parceiros.
[1] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/vitoria-no-stj-e-passo-importante-para-equilibrar-contas-publicas-avalia-haddad [2] https://einvestidor.estadao.com.br/ultimas/haddad-arcabouco-fiscal-julgamento-stf-stj/ [3] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/05/05/haddad-comemora-vitoria-no-stj-em-caso-de-beneficios-fiscais-do-icms.ghtml [4] https://veja.abril.com.br/economia/apesar-de-suspensa-por-mendonca-decisao-do-stj-e-vitoria-para-haddad [5] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/receita-federal-oferece-oportunidade-para-contribuinte-regularizar-irpj-e-csll-antes-do-inicio-dos-procedimentos-de-fiscalizacao
Opmerkingen